quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Carolina de Jesus: catadora de papel e contadora de histórias


Frente à magnificência da poesia, a narrativa é muitas vezes considerada como uma expressão subalterna do pensamento humano. Na verdade, uma produtora de narrativas como Carolina de Jesus é, antes de tudo, uma contadora de histórias cotidianas, uma cronista popular. Contribui com o seu relato para a representação do tema narrado no espaço literário. Esta representação pressupõe uma interpretação do autor, pois ao escolher o assunto e a maneira de narrar, promove um investimento interpretativo, impõe seus limites e ritmo. Além disso, seleciona os episódios a serem narrados, obedecendo a uma ordenação ou cronologia pessoal.


Confunde-se, portanto, o narrador com o texto narrativo, identificando-se de tal forma que é possível conhecer um através do outro, o sujeito pelo objeto textual. A complexidade formal da narrativa ocorre na estruturação do enredo e não necessariamente na linguagem. Por isso, difere-se a narrativa de Carolina de Jesus do poema, sendo este último a expressão sintética do estado anímico da autora, no mais das vezes. A prosa, por outro lado, é quase sempre uma linguagem natural, espontânea, como convém a um relato. É assim em Quarto de Despejo, obra mais conhecida de Carolina de Jesus. Foi publicada pelo jornalista Audálio Dantas, que revisou os originais de trinta e cinco cadernos manuscritos nos quais Carolina Maria de Jesus registrava o seu dia-a-dia na favela do Canindé, em São Paulo.


O livro apresenta descontinuidade e irregularidades, próprias da sua estrutura narrativa em forma de diário. Os registros começam no dia 15 de julho de 1955 e são interrompidos no dia 28 de julho do mesmo ano. Retomados no dia 2 de maio de 1958, estendem-se até 01 de janeiro de 1960. A descontinuidade cronológica do registro não corresponde à rotina dos dias das personagens, cujas atividades se restringiam em sair pela cidade à procura de sucatas que possam ser comercializadas. Papel, lata e ferro são transportados e vendidos, para comprar os alimentos que serão consumidos vorazmente e no mesmo dia.


A personagem principal não é Carolina nem são os outros catadores de papel da favela do Canindé. É a fome e a necessidade diária de mitigá-la que leva a todos para o trabalho árduo e sem muitas recompensas, além das poucas moedas no fim do dia. A autora luta contra fome até mesmo quando escreve. Referindo-se a uma vizinha da favela, reflete: "Dona Domingas é uma preta igual ao pão. Calma e útil". (1960: 52)


No livro de Carolina de Jesus, a pobreza passa por um processo estético, antes de ser estilístico: "...Fiz a comida. Achei bonito a gordura fringindo na panela. Que espetáculo deslumbrante! As crianças sorrindo vendo a comida ferver nas panelas.” (1960: 84) Quarto de Despejo é uma denúncia do abandono social, da exclusão dos sujeitos que são vistos pela sociedade como não-consumidores e, portanto, têm seu espaço reduzido. Ao narrar o cotidiano da favela paulista, Carolina de Jesus transforma a miséria em literatura e ficcionaliza em seus cadernos de anotações diárias a sua relação com aquela sociedade excludente. O luxo e o lixo estão presentes na cena literária, o barraco e a mansão, o papel das ruas e o livro. É Carolina de Jesus o élan presente nos dois status, uma vez que utiliza a folha de papel descartada para registrar suas histórias e sonhos de justiça social.


O ritmo narrativo de Quarto de Despejo é dado a partir da sucessão de imagens perceptíveis pelos sentidos: auditivas, tácteis, visuais etc. Nisto a prosa de Carolina de Jesus se aproxima muito da fala, visto que se trata de uma atitude discursiva em que predomina a segmentação e a interrupção. Na fala, isto ocorre nas pausas naturais da respiração, enquanto na narrativa o ritmo marca o estilo da narradora.


Como afirma M. Foucault, “o sujeito é uma pluralidade de posições e funções possíveis” (1984: 129). Por isso a narrativa de Carolina de Jesus é, sobretudo, uma seleção interpretativa da realidade, elaborada imagisticamente pela autora. Não é apenas o que ela viveu o que registra em seu Quarto de Despejo. É a maneira como percebe a sua realidade e suas relações sociais o que registra na obra. Contrário às idéias de Foucault, o crítico J. Habermas propõe alternativas mais humanísticas na abordagem do texto literário, aproximando-se muito da proposta construtivista que assume usualmente T. Eaglerton. A apresentação de “afirmações de validade” apresentadas por Habermas renovou as discussões sobre a produção literária e a função do poder social, concebido anteriormente como impessoal, anti-humanistas. Os três pensadores aqui citados sinalizam para a possibilidade de considerar arte literária as obras como Quarto de Despejo, por serem representativas do ser/estar social. Outros tantos autores discutem se tais narrativas podem ser inseridas no cânone e serem consideradas como referências da expressão artístico-cultural e literária daquele período histórico.


À parte o debate, a narrativa em Quarto de Despejo é um constructo lingüístico pessoal, cuja função social está na reflexão sobre a realidade, na qual se insere a autora. Entre leitor e obra, estabelece-se um diálogo em que o comportamento inquieto das palavras, escritas de forma totalmente polifônica, encontra ressonância na cosmovisão do receptor/leitor contemporâneo. A realidade da favela paulista narrada por Carolina de Jesus no século XX é muito semelhante ao que se percebe nos grandes centros urbanos brasileiros em nosso século, décadas depois de Carolina de Jesus ter escrito em seus cadernos. Ao narrar as histórias que viveu, Carolina de Jesus nos baliza na realidade injuriosa de seu Quarto de Despejo.


Em seu Quarto de Despejo (1960:36), Carolina de Jesus analisa de forma muito astuta a sociedade brasileira da sua época e de todas as épocas: “De quatro em quatro anos muda-se os políticos e não soluciona a fome, que tem a sua matriz nas favelas e as sucursais nos lares dos operários. A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encera”.

Sabemos que a realidade de Carolina de Jesus não é muito diferente da maioria das autoras baianas, no início do seu fazer poético. A atual pesquisa poderá comprovar as semelhanças e evidenciar as particularidades da geração feminina pós-Carolina.


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