Zilda Freitas
“Os escritos de uma mulher são sempre femininos;
não podem deixar de sê-los; quanto melhor, mais feminino;
a única dificuldade é definir o que entendemos por feminino.”
(WOOLF, 1929, p.23)
Ao descrever o papel que a mulher desempenhava na sociedade de sua época em sua obra intitulada A room of one’s own (Um teto todo seu),V. Woolf (1929, p.13) apresenta-nos situações extremamente constrangedoras para uma mulher: “As damas só são admitidas na biblioteca acompanhadas por Fellow da faculdade ou providas de uma carta de apresentação.”
Isto fica ainda mais evidente quando a mencionada autora imaginava o que teria acontecido se Shakespeare tivesse tido uma irmã chamada Judith, para concluir sabiamente o possível destino desta mulher:
“qualquer mulher nascida com um grande talento no século XVI teria
certamente enlouquecido, ter-se-ia matado com um tiro, ou terminado
seus dias em algum chalé isolado, fora da cidade, meio bruxa, meio
feiticeira, temida e ridicularizada” (WOOLF, 1929, p.65).
Não eram raros os casos em que isso acontecia. A própria V. Woolf, tal qual Safo, Rosa Luxemburgo e tantas outras, teria cometido suicídio, afogando-se à maneira da Ophelia shakespereana. Suicídio lento e doloroso seria o isolamento da brasileira Hilda Hilst em sua chácara no interior paulista. Estudando a obra de G. Eliot, Jane Austen, as irmãs Brontë, etc.,a autora de Orlando concluiu que a mulher precisava de condições mínimas para produzir sua escritura: um teto todo seu, meia hora realmente sua, acesso a texto de outros autores, renda própria, etc. Condições estas que não possuía Jane Austen, por exemplo, que só confiava nas portas que 116 rangiam, avisando a chegada de um intruso, curioso em ler as anotações de seu diário.
De geração em geração, os traços diferenciais entre homens e mulheres não se atenuaram. Ao contrário, parece-me que cada sexo está cada vez mais comprometido com a sua realidade. A mulher ainda é, em algumas culturas, mera mercadoria de troca entre homens (casamento).
Na sociedade ocidental, entretanto, a dicotomia sexual é uma vivência inconfundível do fazer, do prazer, do saber, enfim, do ser. A construção da identidade feminina passaria, necessariamente, pelo recalque do universo masculino, pela diferenciação sexual. No nosso século, assistimos à problematização em profundidade do modelo, até então inconteste, ainda que muitas vezes implícita, da superioridade viril. Não se trata aqui de fazer propaganda do movimento político-social das mulheres, o feminismo. No entanto, o fato é que o papel feminino vêm mudando gradativamente, sem que o papel masculino fosse fundamentalmente tocado.
A tentativa desesperada de igualdade entre os sexos transformouse em apenas um esforço de androginia, com a mulher assumindo uma dupla jornada. Caricatura do homem, a mulher que trabalha fora de casa, para ser respeitada no início do nosso século, teria que pensar, agir e trabalhar mais e melhor do que os homens, sem, entretanto, ganhar mais por isso. Sabemos que, em média, a mulher recebia 40% menos que o homem, para executar as mesmas atividades.
O grande equívoco das feministas foi a desvalorização do universo feminino, aceitando como definição de um mundo mais igualitário aquele em que precisariam apenas adotar os valores masculinos. A vida privada (o lar) foi negligenciada em detrimento da vida pública (o trabalho), durante os primeiros anos do feminismo. Assim, o mal-estar da dona de casa por se sentir explorada pelos homens foi substituído por um mal ainda pior: o sentimento de inadaptação.
Não conseguindo masculinizar-se no seu ambiente de trabalho, a mulher também não conseguiu feminimizar o mundo. E, conseqüência terrível, perdeu o contato com o seu lado mais feminino, o doméstico. Assim, conclui-se que a mulher não conseguiu atingir os objetivos explicitados no manifesto feminista: “a valorização do sensual, a intimidade como mistério, a intuição como conhecimento, o percebido tão forte quanto o provado, o sensível contra o racional, a estética como ética do futuro” (DOCUMENT, 1975, p.13).
Ao suscitar o questionamento sobre as já mencionadas leis, que lhes são impostas pela hierarquia masculina, as mulheres penetraram no espaço público através do seu trabalho; produziram um contra-discurso, uma contra-ideologia, fazendo contrastar o seu ponto de vista com o masculino na cena cultural de nosso século. O movimento libertatório feminino explicitou a incerteza, a pluralidade e a alternativa no universo social predominantemente viril e caracterizado pela verdade absoluta, pela unanimidade e pelo conformismo.
A FALA FEMININA
No fim da década de 80, a defesa da igualdade entre os sexos passa pela afirmação da diferença. Em confronto consigo mesmo, o universo feminino é agora questionado radicalmente. Em busca de uma redefinição, o feminino já não mimetiza de forma caricatural o viril, nem se julga igual a ele. Aprendeu a conviver sem conflito com o autenticamente feminino, sem propagar o no man’s land, sem refletir a imagem masculina. Somente nesta última década, os avanços sócio-culturais permitiram à mulher uma relação profícua com o saber, a partir do abandono daquela fala titubeante e reticente, que marcaram a expressão feminina anteriormente. Se não, vejamos: no espaço privado, isto é, em seu lar, a mulher sempre se sentiu confortável para expressar suas idéias, relativas unicamente a este universo doméstico. Para ela, o homem reservou este ambiente, para ser vista como a rainha do lar. No espaço público, entretanto, ele reinava.
Neste ambiente, a mulher sentia-se quase estrangeira. Sua fala demonstrava que não conhecia nem cultivava o Dom da oratória, tido consensualmente como masculino. A mulher não dominava os códigos culturais, daí o medo de falar em público, perfeitamente compreensível ,depois de séculos de um respeitoso quase silêncio, ou da completaabdicação do ato de se expressar publicamente, com a própria voz, palavras e idéias. Faltava à mulher deter o saber instrumental, ou seja, a arte de exercer uma linguagem mais conceitual, identificada ao universo masculino.
A fala em público parece-me representar para a mulher uma intromissão agressiva no universo masculino. Melhor dizendo, uma masculinização de seu comportamento social. Tida como adorno para os eventos sociais, passa agora a agente, repetindo o registro viril, aceito como o mais apropriado ao espaço público. A mudança de registro lingüístico é perceptível na fala feminina em uma comunicação formal, por exemplo. Por outro lado, muitos estudiosos vêm percebendo uma rasura deste registro masculino na fala da mulher. Desde os anos 80,
pesquisadores vêm discutindo a discriminação lingüística sofrida pela mulher. Isto é, a sócio-lingüística tem observado que há diferenças na maneira como o homem e a mulher se expressam. E mais: “Alguns itens lexicais significam uma coisa quando aplicados aos homens e outra quando aplicados às mulheres, e essa diferença refere-se aos diferentes papéis desempenhados pelos sexos na sociedade” (LAKOFF, 1975, p.3). Segundo essa autora, a mulher emprega mais adjetivos ao falar.Também é mais polida, mais preocupada com a hipercorreção gramatical, o que talvez explique as freqüentes expressões modais que exprimem conteúdos triviais, frívolos. A atitude e os gestos denotam hesitação, pouca segurança, desconforto. Por tudo isso, ainda segundo Lakoff (1975), a fala feminina se desqualifica diante do discurso masculino, mais imperioso e firme. A julgar por estes estudos sócio-lingüísticos, a liberdade feminina passa pelo emprego oral de formas mais afirmativas e menos hesitantes, capazes de consolidar o papel da mulher no espaço público: “Uma mulher
em público está sempre deslocada” (PITÁGORAS apud PERROT, 1998, p.10).
Assim, a mulher vê-se diante de um impasse: utilizar o discurso masculino é pôr em risco sua feminilidade. Não utilizá-lo é expor-se ao ridículo, ao falar em público. A maioria das mulheres optam pela ambigüidade na sua atitude pública, isto é, adotam apenas parcialmente o falar masculino, mantendo um pouco daqueles traços da cultura feminina.É esta ambivalência que hoje norteia o movimento feminista.
Repensando o conceito de igualdade entre os sexos, a partir da valorização das dicotomias, a imagem feminina não se assemelha a dos homens, mas também não se difere completamente de si mesma. Agora, o papel social
da mulher é definido considerando-se sua vida privada e a pública, a dona de casa e a trabalhadora, a que sabe e a que ainda tem muito o que aprender. Vale ressaltar que as universidades estão repletas de mulheres que buscam o saber em várias áreas e não apenas naquelas profissões tradicionalmente aceitas como feminina: magistério, enfermagem, etc.Estas universitárias não absorvem meramente os conhecimentos, mas os produzem. Percebe-se facilmente um considerável aumento na produção verdadeiramente científica assinada por mulheres, no mundo todo. Agora o saber feminino se estrutura na própria experiência e não mais aquela assimilada do discurso masculino. Se é verdade que ao falar em público, a mulher assume quase sempre uma atitude hesitante, é também neste espaço que ela busca o acesso a horizontes anteriormente viris. Busca novas experiências e
saberes, busca poder de decisão e liderança.
Texto publicado em:
Imagens da mulher na cultura contemporânea / organizado por Sílvia
Lúcia Ferreira e Enilda Rosendo do Nascimento. - Salvador: NEIM/
UFBA, 2002. 268p. (Coleção Bahianas; 7)
Lúcia Ferreira e Enilda Rosendo do Nascimento. - Salvador: NEIM/
UFBA, 2002. 268p. (Coleção Bahianas; 7)